terça-feira, 22 de junho de 2010


Hoje tive a chance de reler "A Via Crucis do Corpo" da Clarice Lispector.
O livro é curto e não chega a causar um choque e nem proporciona momentos de reflexão.
Foi feito sob encomenda e reúne uma "Explicação" e treze contos que tratam de adultério, homossexualidade, bissexualidade, o desejo sexual de solteironas, senhoras de idade, freiras, padres, de crimes sexuais e venda de sexo. Pode-se dizer que é um simulacro erótico da Clarice.

O interessante desse livro é que as histórias não são um emaranhado confuso e articulado como costumam ser as obras de Clarice e ainda que os incidentes sexuais tendam para o triste, o vingativo, o humilhante, algumas histórias são bem doidas e engraçadas. Eu, pelo menos, consigo dar boas risadas sempre que leio algumas, como essa:


A LÍNGUA DO "P"
Cidinha, como a chamavam em casa - era professora de inglês. Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia rica. Até suas malas eram de boa qualidade. Morava em Minas Gerais e iria de trem para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova Iorque.
Era muito procurada como professora. Queria aperfeiçoar-se nos Estados Unidos. Tomou o trem das sete horas para o Rio. O vagão estava vazio, só uma velhinha dormindo num canto sob o seu xale. Na próxima estação subiram dois homens que se sentaram no banco em frente ao banco de Cidinha. O trem em marcha. Um homem era alto, magro, e bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca. Eles olharam para Cidinha. Esta desviou o olhar, olhou pela janela do trem.Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na própria virgindade?
Então os dois homens começaram a falar um com o outro. No começo Cidinha não entendeu palavra. Parecia brincadeira.. Que língua era aquela?
De repente percebeu: eles falavam com perfeição a língua do “p”. Assim:
- Vopocê reperaparoupou napa mopoçapa boponipitapa?
- Jápá vipi tupudopo. Épé linpindapa. Espestápá nopo papapopo.
Queriam dizer: você reparou na moça bonita? Já vi tudo. É linda. Está no papo.
Cidinha fingiu não entender: entender seria perigoso demais. A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos adultos. Os dois continuaram: - Queperopo cupurrapar apa mopoçapa. Epe vopocêpê ?
- Tampambémpém. Vapaipi serper nopo tupunelpel. Queriam dizer que iam currá-la no túnel...O que fazer? Cidinha não sabia e tremia de medo. Ela mal se conhecia. Aliás nunca se conhecera por dentro. Quanto a conhecer os outros, aí e que piorava. Me socorre, Virgem Maria! Me socorre! Me socorre!
- Sepe repesispis tirpir popodepemospos mapatarpar epelapa. Se resistisse podiam matá-la. Era assim então.
- Compom umpum pupunhalpal. Epe roupoubarpar epelapa.Matá-la com um punhal. E podiam roubá-la.Como lhes dizer que não era rica? Que era frágil, qualquer gesto a mataria. Tirou um cigarro da bolsa para fumar e acalmar-se. Não adiantou. Quando seria o próximo túnel? Tinha que pensar depressa, depressa, depressa. Então pensou: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda. Então levantou a saia, fez trejeitos sensuai s- nem sabia que sabia fazê-los, tão desconhecida era de si mesma - abriu os botões do decote, deixou os seios meio à mostra. Os homens de súbito espantados.
- Tápá dopoipidapa. Está doida, queriam dizer. E ela a se requebrar que nem sambista do morro. Tirou da bolsa o batom e pintou-se exageradamente. E começou a cantarolar. Então os homens começaram a rir dela. Achavam graça na doideira de Cidinha. Esta desesperada. E o túnel? Apareceu o bilheteiro. Viu tudo. Não disse nada. Mas foi ao maquinista e contou. Este disse:
- Vamos dar um jeito, vou entregar ela pra polícia na primeira estação. E a próxima estação veio. O maquinista desceu, falou com um soldado por nome José Lindalvo que Subiu no vagão, viu Cidinha, agarrou-a com brutalidade pelo braço, segurou como pôde as três maletas, e ambos desceram. Os dois homens às gargalhadas. Na pequena estação pintada de azul e rosa estava uma jovem com uma maleta. Olhou para Cidinha com desprezo. Subiu no trem e este partiu. Cidinha Foi levada ao xadrez e lá fichada. Chamaram-na dos piores nomes. E ficou na cela por três dias.
Afinal deixaram-na partir. Tomou o próximo trem para o Rio. Tinha lavado a cara não era mais prostituta. Chegou ao Rio exausta. E andava nas ruas de Copacabana, quando viu a banca de jornal. Em manchete estava estava escrito: “Moça currada e assassinada no trem”.Tremeu toda. Acontecera. A moça que a desprezara. Chorou na rua. Não queria saber de detalhes. Pensou:
-Épé. Opo despestipinopo
épé
impimplaplacápável!!!